terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Aprendi a viver com simplicidade


Aprendi a viver com simplicidade, com juízo,
a olhar o céu, a fazer minhas orações,
a passear sozinha até a noite,
até ter esgotado esta angústia inútil.

Enquanto no penhasco murmuram as bardanas
e declina o alaranjado cacho da sorveira,
componho versos bem alegres
sobre a vida caduca, caduca e belíssima.
Volto para casa. Vem lamber a minha mão
o gato peludo, que ronrona docemente,
e um fogo resplandecente brilha
no topo da serraria, à beira do lago.
Só de vez em quando o silêncio é interrompido
pelo grito da cegonha pousando no telhado.
Se vieres bater à minha porta,
é bem possível que eu sequer te ouça.

Anna Akhmátova
tradução de Lauro Machado Coelho

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Motivo cantado por Fagner

Motivo



Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.

Páramo


Na varanda sem paz eu vejo o mar
mas já não vejo junto desses olhos
que viam o mar amordaçar-me.
A varanda, todavia, ainda traz
na ondulação, nas maresias
a ilusão de um silêncio
em que tu pretendias: aqui,
nesta lei tão dura, senti
que nada mais terei do que ser de ti.
A varanda continua a sua conjura,
eu continuo o desgaste do mar
só que noutra jura a tua vida dura
e até o mar te deixou de esperar.

O vário vento que vem e que voa
sobre argolas com vasos de gerânios
que tombam vagarosos e rosas
sobre ruas ruidosas de Lisboa
toca ao de leve no copo por que bebo
esquecido e sozinho ali
onde dantes vinhas com o maior apego
ouvir ao fim da tarde eu olhar para ti.

Ao alto dessas ruas que Lisboa já não tem
havia um andar quase arruinado
com o estilhaço, a cólera, o fermento
de quem se resignava também
a que não valesse a pena nada.
No vagar desse desmoronamento
essa ruína foi tua e foi minha,
o seu reboco de cal, a pele refém,
a cisterna petrificada.
Amávamo-nos entre eléctricos que passavam
do nascer do dia até ao nascer do dia.

Não há nada que se peça que nos seja dado
mesmo quando gritamos alto por perdão.
Merecemos tudo o que ficou fragmentado
no pensamento que não sabe inebriar-se
quando os sentidos perderam o condão.

Essas ruas de Lisboa que findaram
como findaram os dedos que prenderam
o bordão de ternura
que tantos outros nos cortaram.

Tal qual o prédio caímos
e apenas o pó
desenha entre o que nem persigo
um resto que sabe que está só
porque nenhuma solidão vem ter consigo.

Joaquim Manuel Magalhães, Alta Noite em Alta Fraga
Lisboa, Relógio d'Água, 2001

domingo, 20 de janeiro de 2013


Tropeçando de volta à cama depois de urinar
Afasto as grossas cortinas e surpreendo-me
Com as nuvens que correm, com a lua tão limpa.

Quatro da manhã: jardins de sombras oblíquas, jazendo
Sob um céu cavernoso e rasgado pelo vento.
Há nisto uma faceta ridícula,

Na lua a lançar-se através de nuvens fugazes
E soltas como fumo de canhão, para logo se apartar
(A luz pétrea aguçando, cá em baixo, os telhados)

Alta e soberba e separada –
Pastilha de amor! Medalhão de arte!
Ó lobos da memória! Imensidões! É certo,

Há um leve arrepio, quando se olha para o alto.
A dureza e a claridade e o alcance,
A singularidade de tão vasto e fixo olhar

É lembrança da força e da dor
De ser jovem; do que não se pode ter de novo,
Mas que é vivido por outros, em pleno, nalgum lugar.

Philip Larkin, Janelas Altas, 2004
tradução de Rui Carvalho Homem

Seja assim o Poema


Lixam-te a vida, o papá e a mamã,
Mesmo que não seja essa a intenção.
Deixam-te todos os vícios que tenham
E mais dois ou três, por especial atenção.

Mas no tempo deles também foram lixados
Por tolos trajando jaquetão e coco.
Que quando não estavam piegas ou hirtos
Saltavam, raivosos, à veia, ao pescoço.

E assim é legada a infelicidade,
Vai mais e mais fundo, como o fundo do mar.
Foge mal tenhas oportunidade
E quanto a teres filhos – isso nem pensar.

Philip Larkin, Janelas Altas, 2004
tradução de Rui Carvalho Homem

Janelas Altas


Com que os velhos sonharam toda a vida –
Compromissos e gestos postos de lado
Que nem debulhadora fora de moda,
E toda a gente nova a descer pelo escorrega,


Interminavelmente, para a felicidade. Será
Ou medo do inferno, ou ter de esconder
Em vez de palavras, vêm-me à ideia janelas altas:

Que alguém olhou para mim há quarenta anos,
E pensou: Isso é que vai ser boa vida,
Nada de Deus ou de suores nocturnos,

Do padre aquilo em que se pensa. Ele
E a malta dele, c’um raio, hão-de ir todos pelo escorrega
Abaixo, livres que nem pássaros? E de imediato

O vidro que acolhe o sol, e mais além
O ar azul e profundo, que não revela
Nada e está em lado nenhum e não tem fim.

Philip Larkin, Janelas Altas, 2004
tradução de Rui Carvalho Homem

sábado, 19 de janeiro de 2013

Fonte (I), de Herberto Hélder


Fonte - I

Ela é a fonte. Eu posso saber que é
a grande fonte
em que todos pensaram. Quando no campo
se procurava o trevo, ou em silêncio
se esperava a noite,
ou se ouvia algures na paz da terra
o urdir do tempo ---
cada um pensava na fonte. Era um manar
secreto e pacífico.
Uma coisa milagrosa que acontecia
ocultamente.

Ninguém falava dela, porque
era imensa. Mas todos a sabiam
como a teta. Como o odre.
Algo sorria dentro de nós.

Minhas irmãs faziam-se mulheres
suavemente. Meu pai lia.
Sorria dentro de mim uma aceitação
do trevo, uma descoberta muito casta.
Era a fonte.

Eu amava-a dolorosa e tranquilamente.
A lua formava-se
com uma ponta subtil de ferocidade,
e a maçã tomava um princípio
de esplendor.

Hoje o sexo desenhou-se. O pensamento
perdeu-se e renasceu.
Hoje sei permanentemente que ela
é a fonte.

                Herberto Hélder